Índio, padre e mito: a história do fundador de Oriximiná
A origem da cidade de Oriximiná se mistura com
a do venerado padre José Nicolino de Souza.
Um padre
aventureiro, de origem indígena e que passou parte da vida adulta na Europa e
outra parte dela desbravando o interior do Pará. Tido como mito, o fundador da
cidade de Oriximiná (a cerca de 1.800 km de Belém) inspira lendas e é objeto de
adoração na região, mas entre os historiadores é visto como um personagem
complexo, contraditório e até polêmico.
A vida de
José Nicolino de Souza daria um filme. Não se conhecem com certeza seu local e
data de nascimento, mas seus feitos se concentraram na segunda metade do século
19 - em 2012 completam-se 130 anos de sua morte. Parte de sua história se
mistura com a de Oriximiná. (...)
Couto,
que atualmente desenvolve o projeto de pesquisa "Missões religiosas na
Amazônia do século XIX", conta que o interesse pelo padre José Nicolino
começou quando se deu conta que "quase 100%" das monografias que leu
sobre Oriximiná tinham um tópico que começava com essa "espécie de mito
fundador". De mãe índia, José Nicolino teria sido aprisionado numa
excursão na fronteira com a Guiana Inglesa e acabou sendo criado pelo pai do
romancista paraense Inglês de Souza, o desembargador Marcos Antônio Rodrigues
de Souza. Dele herdou o sobrenome, mas também ganhou a oportunidade de
educar-se em boas escolas e até de ir para o exterior, chance rara para um
descendente de índios na época.
Lendas e
aventuras - O professor explica que não se sabe exatamente o ano de
nascimento do padre nem a que etnia pertencia sua mãe. Enquanto faltam detalhes
históricos, sobram lendas e "histórias mirabulosas" a respeito de
José Nicolino. "Há muita coisa inventada", conta, dando como exemplo
o próprio ano de nascimento do padre que aparece na entrada da igreja matriz da
cidade - onde, por sinal, estão seus restos mortais -, 1936.
Criado como
"branco", o futuro padre foi pra França em 1862 e ficou lá até 1870.
Ao voltar ao Brasil, trabalhou em algumas paróquias até virar o pároco de
Óbidos em 1875. Couto descobriu o rastro do José Nicolino por meio de pesquisas
no Arquivo Público de Belém, em jornais da época como A Boa Nova e,
principalmente, estudando o diário de viagem do padre, que participou de três
expedições na região pelos rios Trombetas e Cuminá, em 1877, 1878 e 1882, na
qual faleceu, "provavelmente vítima de febre amarela", relata Couto.
"O
que é curioso nos diários dele é o argumento que ele tenta estabelecer: o de
que estava interessado em fazer essas viagens para catequizar os índios. Mas
analisando o diário com calma, percebemos que o grande interesse dele e das
pessoas que o acompanhavam era a chamada Região dos Campos, uma área muito
extensa e excelente para a criação de gado", pontua o professor.
Contradição,
polêmica e nomes profanos - Couto detalha que "o tempo inteiro ele
vai se contradizendo no diário, dizendo que quer defender índio, mas não tem
contato com nenhum". "Na verdade, o que ele queria era desenvolver a
região, facilitando a criação de gado", observa Couto. As expedições eram
patrocinadas por fazendeiros locais e eram compostas por grupos de 15 a 20
pessoas, sendo a maioria de negros e índios, que faziam os trabalhos braçais.
Após a morte do padre, houve muita discussão na imprensa da época a respeito do
papel do pároco, que parecia mais preocupado com a conquista das terras do que
com a missão espiritual de catequese.
"No
fundo, acho que ele queria as duas coisas. Ele era um padre que já tinha
trabalhado catequizando e dizer que queria catequizar os índios nas expedições
era uma forma de reivindicar legitimidade a ele", opina o professor.
Curiosamente, ao contrário do que era comum na época, José Nicolino não
batizava os lugares por onde passava com nomes religiosos. Em lugar de dar o
nome de um santo a um rio, por exemplo, costumava relacioná-los com situações
do cotidiano. "Se mataram um macaco para comê-lo perto de um igarapé,
chamavam-no Igarapé do Macaco", exemplifica Couto.
O próprio
nome da cidade de Oriximiná é um mistério. Alguns moradores afirmam que
significa "zangão", outros que derivaria de uma palavra indígena para
"muitas praias". O primeiro nome dado por José Nicolino teria sido
diferente: Uruã-Tapera ou Mura-Tapera. Couto questiona esse último porque
significa "maloca de muras" e na região não havia índios dessa etnia.
"Vejo que é uma angústia para as pessoas lá não saberem o que significa, mas
o nome de Oriximiná é algo ainda em aberto", conta.
Memória
indígena apagada - Couto diz que um aspecto que chama a atenção na
história do desbravador de Oriximiná é o fato de ter sido "apagada ou
esmaecida" a memória dele como índio, apesar da forte presença deles na
região. "Oriximiná tem vários grupos indígenas e a área próxima à cidade
tem cerca de 13 etnias. Mas se perguntar quais são os índios que moram aqui
próximo, só vão falar dos Wai-Wai, que é uma designação genérica",
detalha Couto.
Se hoje
os índios sofrem com a invisibilidade e até com preconceito, na época de José
Nicolino a situação era ainda mais grave e não muito propícia a levantar
bandeiras. "Chama atenção como ele se referia aos índios de forma gentil e
nunca se identificava com eles; não dizia que vinha desse povo, mantendo uma
distância muito grande. Para ele se afirmar no clero, não seria interessante
manter essa identidade explícita de índio", relata.
Couto
lembra que durante o século 19 havia um debate na sociedade acerca de a
possibilidade do índio se 'civilizar' e a ideia geral é que ele não seria capaz
de ser civilizado. "Não que eu ache que o Nicolino foi 'civilizado', mas é
um índio que estuda em escola de branco, vai pra Europa, se ordena, volta e
ocupa uma função que era muito importante na época, pois o padre no interior
era tudo. Ele põe por terra a ideia de que o índio só conseguia imitar e não
aprender", constata. "Acho interessante pensar nele como uma figura
que de certa forma expressa a ocupação daquela região, é uma das vertentes
desse processo de colonização", conclui.
(Clarissa
Vasconcellos - Jornal da Ciência)
FONTE: http://marciocoutohenrique.blogspot.com.br/
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